Pediram-me uma pregadeira ceifeira.
Meti mãos à obra e tendo por base as minhas bonequinhas vesti-a a rigor.
Antigamente, as ceifeiras vestiam blusa larga e duas saias. Uma das saias servia de protecção, atando-a fazendo uma espécie de calções, ficando a outra para o regresso a casa, limpinha como se tivesse acabado de sair de casa. Na cabeça usavam lenço e chapéu para se protegerem do sol tórrido, ficando a mão que recolhia os cereais protegida por dedeiras feitas de cana.
Ela Canta, Pobre Ceifeira Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"